terça-feira, 29 de dezembro de 2009

DEBATE ABERTO - A CONTRA-REVOLUÇÃO JURÍDICA

Está em curso uma contra-revolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles. Trata-se de uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


Publicado na Agência CARTA MAIOR
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4493&boletim_id=629&componente_id=10497

Está em curso uma contra-revolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles.
Entendo por contra-revolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições.
Como o sistema judicial é reativo, é necessário que alguma entidade, individual ou coletiva, decida mobilizá-lo. E assim tem vindo a acontecer porque consideram, não sem razão, que o Poder Judiciário tende a ser conservador. Essa mobilização pressupõe a existência de um sistema judicial com perfil técnico-burocrático, capaz de zelar pela sua independência e aplicar a Justiça com alguma eficiência.
A contra-revolução jurídica não abrange todo o sistema judicial, sendo contrariada, quando possível, por setores progressistas.
Não é um movimento concertado, muito menos uma conspiração. É um entendimento tácito entre elites político-econômicas e judiciais, criado a partir de decisões judiciais concretas, em que as primeiras entendem ler sinais de que as segundas as encorajam a ser mais ativas, sinais que, por sua vez, colocam os setores judiciais progressistas em posição defensiva.
Cobre um vasto leque de temas que têm em comum referirem-se a conflitos individuais diretamente vinculados a conflitos coletivos sobre distribuição de poder e de recursos na sociedade, sobre concepções de democracia e visões de país e de identidade nacional.
Exige uma efetiva convergência entre elites, e não é claro que esteja plenamente consolidada no Brasil. Há apenas sinais, nalguns casos perturbadores, noutros que revelam que está tudo em aberto. Vejamos alguns.
Ações afirmativas no acesso à educação de negros e índios
Estão pendentes nos tribunais ações requerendo a anulação de políticas que visam garantir a educação superior a grupos sociais até agora dela excluídos.
Com o mesmo objetivo, está a ser pedida (nalguns casos, concedida) a anulação de turmas especiais para os filhos de assentados da reforma agrária (convênios entre universidades e Incra), de escolas itinerantes nos acampamentos do MST, de programas de educação indígena e de educação no campo.
Terras indígenas e quilombolas
A ratificação do território indígena da Raposa/Serra do Sol e a certificação dos territórios remanescentes de quilombos constituem atos políticos de justiça social e de justiça histórica de grande alcance. Inconformados, setores oligárquicos estão a conduzir, por meio dos seus braços políticos (DEM, bancada ruralista), uma vasta luta que inclui medidas legislativas e judiciais.
Quanto a estas últimas, podem ser citadas as "cautelas" para dificultar a ratificação de novas reservas e o pedido de súmula vinculante relativo aos "aldeamentos extintos", ambos a ferir de morte as pretensões dos índios guarani, e uma ação proposta no STF que busca restringir drasticamente o conceito de quilombo.
Criminalização do MST
Considerado um dos movimentos sociais mais importantes do continente, o MST tem vindo a ser alvo de tentativas judiciais no sentido de criminalizar as suas atividades e mesmo de dissolvê-lo, com o argumento de ser uma organização terrorista.
E, ao anúncio de alteração dos índices de produtividade para fins de reforma agrária, que ainda são baseados em censo de 1975, seguiu-se a criação de CPI específica para investigar as fontes de financiamento do movimento.
A anistia dos torturadores na ditadura
Está pendente no STF uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pela OAB requerendo que se interprete o artigo 1º da Lei da Anistia como inaplicável a crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar.
Essa questão tem diretamente a ver com o tipo de democracia que se pretende construir no Brasil: a decisão do STF pode dar a segurança de que a democracia é para defender a todo custo ou, pelo contrário, trivializar a tortura e execuções extrajudiciais que continuam a ser exercidas contra as populações pobres e também a atingir advogados populares e de movimentos sociais.
Há bons argumentos de direito ordinário, constitucional e internacional para bloquear a contra-revolução jurídica. Mas os democratas brasileiros e os movimentos sociais também sabem que o cemitério judicial está juncado de bons argumentos.

domingo, 27 de dezembro de 2009

ESCOLHA O FINAL

ESCOLHA O FINAL
Mesmo nas histórias reais, a verdade nunca é simples

ELIANE BRUM
ebrum@edglobo.com.br
Repórter especial de ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo)


É curioso como acordamos com a ilusão de que sabemos o que vai acontecer. Numa manhã, dias atrás, eu tinha uma série de compromissos encadeados numa série que acabaria só tarde da noite. A parte leve do meu dia era um pit stop para fazer as unhas no salão aonde vou sábado sim, sábado não. Eu tinha acabado de superar o dilema feminino de escolher o esmalte, depois de oscilar entre cores e nomes que só os esmaltes são capazes de ter: Atrevida, Maçã, Paixão e Canoa. De repente, essa rotina segura foi rompida por um grito.
“A mulher está desmaiando”, gritou Elis, a moça que tinge, lava e seca os cabelos. Pela cortina, eu só vi as costas de uma mulher grande, sentada no banco diante da calçada, na Vila Madalena, em São Paulo. Ciça, a dona do salão, amparava o seu corpo. Tatiane, a recepcionista, correu a buscar um copo d’água. Rose, a manicure, arriscou um diagnóstico: “Pressão baixa”. Voltei a ler. A moça estava sendo cuidada. Eu tentava recuperar a palavra interrompida na página do jornal quando ela começou a falar.
O desespero na sua voz alcançou as cutículas da minha alma. Eu não entendia o que ela dizia, só escutava o desamparo. Pela cortina, via seus ombros sacudirem-se num choro convulso. Na porta, Tatiane narrava o que ouvia. Sua história vinha aos soluços, como no twitter. “O marido morreu”. “Ela saiu às 4h da manhã de casa”. “Foi despejada porque não tinha o dinheiro do aluguel”. “Deixou os filhos e suas coisas debaixo de uma árvore e veio procurar trabalho”. “O filho mais velho tem 12 anos e ficou chorando”. “Ela tem gêmeos de nove meses que amamenta”. “A vizinha ficou olhando os filhos”. “Ela está com fome”. “Ela está desesperada”.
No lado de dentro, nós éramos mulheres fazendo as unhas, tingindo e cortando os cabelos, num espaço do feminino distante do feminino dela. A dor da mulher entrava pela porta daquele santuário em que vivíamos nossas delicadezas no meio de uma cidade bruta. Cada uma com problemas que nos tentaculavam como polvos.
Algumas de nós cravaram os olhos em suas revistas de celebridades. Não porque fossem indiferentes ao drama, mas porque era dolorido demais entrar em contato. Tentavam se convencer de que aquilo não estava acontecendo. Se ficassem bem concentradas na polêmica sobre o vestido curto de Juliana Paes na cerimônia do Emmy, a voz terrível do lado de fora acabaria se calando. Uma delas nem percebeu que a revista estava de cabeça para baixo.
A certa altura, todas nós chorávamos. Uma mistura de compaixão e vergonha. Não por chorar, mas por não saber o que fazer. Éramos mulheres que davam duro para ganhar a vida e às vezes nos escondíamos ali para ficar bonitas. Fugíamos não só de nossas unhas roídas, mas da feiúra do mundo. E lá estava ela, à porta de nosso pequeno e frágil universo, chorando de fome e desespero. Cadê os seguranças, as cercas eletrificadas, o porteiro eletrônico, os vidros com insulfilm para nos proteger do desamparo alheio? Não havia.
Com braços espichados, pernas no colo da manicure, eu era um retrato patético da impotência. Depois de alguns minutos eternos consegui romper meu imobilismo. “Tati, quanto é o aluguel dela?”. Tati correu para fora. Voltou. “É cem reais.” A dona do salão ofereceu a ela um emprego em sua casa. Dei a ela o dinheiro do aluguel, para que pudesse reorganizar a vida e voltar a trabalhar.
A mulher quis entrar para me conhecer. O desamparo agora tinha corpo. Era negra, grande, os seios fartos de leite. O conjunto azul de saia e blusa revelava sua tentativa de estar apresentável para bater de porta em porta em busca de um emprego. Sempre me comovi com estes pequenos detalhes. O vestido puído, mas limpo, o paletó curto nas mangas, os sem-tetos que lavam as roupas nos parques para vesti-las embaixo de viadutos imundos.
Nos abraçamos ali, entre escovas, esmaltes e secadores de cabelo. Descobri que eu precisava tanto daquele abraço quanto ela. Duas estranhas abraçadas, cada uma com o nariz enfiado no pescoço da outra, misturando o sal das nossas lágrimas e do nosso suor. Duas mulheres em posições sociais diferentes, mas que se reconheciam no desamparo. Sem cercas para nos apartar, nos enxergávamos.
Quando percebi, eu dizia coisas para ela como: “A vida às vezes é bem dura, mas passa”. Ou: “Come antes de pegar o ônibus para não desmaiar”. Ou ainda: “Paga o aluguel, cuida dos teus filhos e depois volta”. Soube então que seu nome era Eliane. Éramos duas Elianes chorando abraçadas pela dor de ser mulher num mundo tão assustador.
Não era esmola o que dei ali. Nem era esmola o que ela aceitou. Era algo que nos igualava, que permitia que nos abraçássemos e chorássemos juntas. Ela achava que Deus tinha guiado os seus passos. “Eu ia por uma rua, mas Deus me mandou ir por outra”, disse ela. Já eu acredito mais nos pequenos milagres humanos. E acredito que eles acontecem quando vencemos nosso medo e nos reconhecemos nos olhos do outro. Toda violência, acho eu, começa quando deixamos de nos enxergar, erguendo – também literalmente – muros entre nós. Apartados uns dos outros, é óbvio que quando nos encontramos não há reconhecimento, só desconfiança.
Não foi por acaso que ela desabou naquela porta. O salão tem porta para a calçada e um banco onde é possível sentar. Sua arquitetura acolhe, não afasta. Deve ter sido o único banco que Eliane encontrou nos muitos quarteirões por onde andou arrastando a sua dor. Naquele mundo de mulheres ela chegou como estrangeira. Mas suas palavras foram ecoando em cada uma de nós, até que ultrapassaram a soleira da porta junto com ela. Ela então se tornou uma de nós, mulheres tentando desenredar a vida.
Salões de beleza, seja nos bairros nobres ou nas favelas, são universos onde os dramas do mundo feminino se desenrolam. Há uma força poderosa nesse desejo de se embelezar. Somos todas muito parecidas com os pés nus estendidos no colo de outra mulher. Essa trama delicada é tema de um filme bonito que está nas locadoras chamado Caramelo (Nadine Labaki, 2007).
Nele, as vidas de cinco mulheres se entrelaçam num salão de beleza de Beirute, no Líbano. Layale, amante de um homem casado, sonha com o dia em que ele vai se separar para ficar com ela; Nisrine está de casamento marcado, mas não é mais virgem e não sabe como contar isso ao noivo muçulmano; Rima sente atração por mulheres; Jamale tem medo de envelhecer; e Rose cuida da irmã mais velha.
Me senti num filme real naquele final de manhã. Um filme só de mulheres. Quando a outra Eliane partiu, ficamos fungando em silêncio. E Rose terminou de pintar minhas unhas com esmalte Maçã.
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Eliane deveria voltar na terça-feira seguinte para começar a trabalhar na casa da dona do salão. Nunca apareceu.
O que teria acontecido? O final desta história não é simples.
A terça-feira em que ela deveria voltar, 8 de dezembro, foi o dia em que São Paulo parou por causa da chuva. Eliane disse que morava nos confins da Zona Leste. Teria ela sido acossada pela chuva? Ou alguma de suas crianças? Como acontece a cada ano, dezenas morrem de algo tão previsível quanto a chuva no estado mais rico do país. Só naquela terça-feira morreram pelo menos seis na Grande São Paulo. E centenas ficaram desabrigadas.
Fico de olho nas notícias sobre os mortos, mas até agora não encontrei ninguém com suas características. Ela pode estar ferida, o barraco pode ter desabado, um filho pode ter ficado doente. Ela não deixou nenhum endereço. Ficou apenas de voltar com certeza.
Ou seria um golpe? Aceitando essa hipótese plausível, teríamos nós, escoladas moradores da metrópole, caído numa velha pantomina. A favor de nós, para que nos sintamos um pouco menos idiotas, pode-se dizer que ela era uma grande atriz. Sim, porque estava gelada, suava frio, tremia muito e chorava lágrimas copiosas.
Há outras possibilidades. De que ela estivesse mesmo desesperada e com fome, mas precisou contar uma história mais trágica para nos sensibilizar. Ou ainda, que estivesse em síndrome de abstinência de algum tipo de droga, o que explicaria o quase desmaio, os tremores e o suor frio. Mas ninguém lhe daria dinheiro para comprar crack, por exemplo, se falasse a verdade. Neste caso, o desespero seria real, o motivo mentira.
aA verdade nunca é fácil nem está toda no mesmo lugar.
Quando fazemos reportagens, precisamos duvidar de tudo. Vamos a todos os lugares, falamos com todos os envolvidos, checamos os documentos, ouvimos o contraditório e relatamos o que encontramos, para que os leitores possam chegar a suas próprias conclusões. Mas, na vida cotidiana, não temos esse tempo. As escolhas, em geral, precisam ser rápidas. Estender ou não a mão a alguém que pede ajuda?
Não há certezas. E, na dúvida, qual é o final que prefiro para esta história?
Por um lado, gostaria de não ter caído num golpe. Ninguém gosta de se sentir idiota. Por outro, se não era um golpe, ela pode estar morta ou ferida o suficiente para não poder ligar pedindo ajuda. Isso seria bem pior, obviamente. Por paradoxal que seja, o melhor é ter sido vítima de um golpe e feito um papel ridículo.
Possivelmente nunca saberei a verdade dela. Mas é importante conhecer a minha verdade. A pergunta que importa agora é: o que eu faria se algo assim acontecesse novamente?
Eu faria o mesmo.
Pertenço à parcela das pessoas que prefere deixar a porta aberta a se trancar atrás dela. Sempre há um risco de entrar um golpista pela porta, mas por ela também entra quem precisa de um colo, entra o novo e até o extraodinário. É uma convicção profunda que me move pela vida. E espero sempre ser capaz de escolher este final para a minha história.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

FELIZ NATAL, FELIZ ANO NOVO


"Um menino pequeno nos conduzirá" (Adélia Prado)
Nós, que vivemos o reencontro com a juventude e fizemos a viagem no tempo, estamos saboreando de forma especial a passagem de mais um ano.
Que tenhamos sabedoria e saúde para viver a vida, este é meu desejo.
Abraços!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O retorno do patinho feio

O RETORNO DO PATINHO FEIO

Alfonso era o mais belo cisne do lago príncipe de Astúrias. Todos os dias, ele contemplava sua imagem refletida nas águas daquele chiquérrimo e exclusivo condomínio para aves milionárias. Mas Alfonso não se esquecia de sua origem humilde.
- Pensar que, não faz muito tempo, eu era conhecido como o Patinho Feio... Um dia, ele sentiu saudades da mãe, dos irmãos e dos amiguinhos da escola. Voou até a lagoa do Quaquenhá. O pequeno e barrento local de sua infância.
A pata Quitéria conversava com as amigas chocando sua quadragésima ninhada.
Alfonso abriu suas largas asas brancas.
- Mamãe! Mamãe! Você se lembra de mim?
Quitéria levantou-se muito espantada.
- Se-se-senhor cisne... quanta honra... mas creio que o senhor se confunde...
- Mamãe...?
- Como poderia eu ser mãe de tão belo e nobre animal? Não adiantou explicar. Dona Quitéria balançava a cabeça. -
- Esse cisne é mesmo lindo... mas doido de pedra, coitado...
Alfonso foi então procurar a Bianca. Uma patinha linda do pré-primário. Que vivia chamando Alfonso de feio.
- Lembra de mim, Bianca? Gostaria de me namorar agora? He, he, he.
- Deus me livre! Está louco? Uma pata namorando um cisne! Aberração da natureza...
Alfonso respirou fundo. Nada mais fazia sentido por ali. Resolveu procurar um famoso bruxo da região. Com alguns passes mágicos, o feiticeiro e astrólogo Ornar Rhekko resolveu o problema. Em poucos dias, Alfonso transformou-se num pato adulto. Gorducho e bastante sem graça. Dona Quitéria capricha fazendo lasanhas para e/e.
- Cuidado para não engordar demais, filhinho. Bianca faz um cafuné na cabeça de Alfonso.
- Gordo... pescoçudo... bicudo... Mas sabe que eu acho você uma gracinha?
Viveram felizes para sempre.

Fonte: COELHO, Marcelo. "O Retorno do Patinho Feio". Folha de S.Paulo, 19 mar. 2005. Folhinha, p. 8

segunda-feira, 17 de agosto de 2009



Paranoia, conspiração ou realidade? A mídia e a pandemia da gripe



No artigo que segue, os autores analisam a cobertura jornalística em torno à gripe A a partir de três dimensiones: a econômica, a epidemiológica e a social. E mostram como o discurso dos meios é funcional à medicalização e à biopolítica.

O texto foi escrito Hugo Spinelli, Marcio Alazraqui e Anahí Sy, professores da pós-graduação em Epidemiologia, Gestão e Políticas de Saúde e Especialização em Epidemiologia da Universidade Nacional de Lanús, na Argentina, publicado no jornal argentino Página/12, 11-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A mídia, em geral, apresenta os temas do Processo Saúde-Doença-Atenção em termos negativos e catastróficos. As boas notícias não são notícias. O que os meios de comunicação problematizam são os escândalos, as tragédias, os atos violentos e algumas pandemias reais ou potenciais. Lembram-se de quando íamos ficar doentes de cólera ou ter a síndrome da vaca louca ou a mais recente gripe aviária, para a qual o Ministério da Saúde [argentino] até comprou medicamentos naquele momento? Tudo isso vende mais do que outros fatos que não são tão espetaculares, por exemplo, a tarefa dos profissionais de saúde nesta – agora sim – real pandemia.

Ao analisar as notícias sobre a pandemia em função de três dimensões (econômicas, epidemiológicos e sociais), podemos – de maneira esquemática – descrever sua evolução em sete etapas (que não têm uma linearidade mecânica, mas que se sobrepõem e coexistem).

A primeira fase está vinculada com a origem da gripe suína. A partir da dimensão econômica, é necessário recuperar o papel dos negócios de alimentos da empresa Smithfield Foods Inc., a produtora de carne suína mais importante do mundo, que, com mais de um milhão de porcos no povoado de La Gloria, no México, é denunciada como o lugar onde a epidemia começou. É a terceira empresa nos EUA em produção de alimentos, com um faturamento anual de mais de 12 bilhões de dólares, localizada pela revista Fortune na posição 222 entre as 500 empresas mais importantes do mundo.

A partir da dimensão epidemiológica, é necessário recuperar o artigo da revista Science de 2003, que alertava para a mutação do vírus da gripe suína e sua relação com as formas de produção de suínos. Em janeiro de 2009, a mesma revista assinalou a passagem do vírus dos suínos para os humanos.

A partir da dimensão social, para os argentinos, era um problema dos outros, acontecia com os outros, e, para isso, nada melhor do que demonstrar a nossa capacidade de discriminar. Assim, cancelaram os voos com o México, gerando não poucas críticas na América Latina por essa atitude.

A segunda fase se instalou como uma catástrofe. A partir da economia, a grande pressão do lobby de produtores de carne suína conseguiu mudar o nome da gripe que tomou assim uma denominação mais científica: gripe A (H1N1). A partir da dimensão epidemiológica, essa nova denominação permitia dar ao processo uma causalidade simples, ligada a um vírus, retirando toda relação com um processo social e produtivo como era o que a denominação anterior lhe dava. Desde o social, a pandemia se instalou como alarme e catástrofe. Os meios de comunicação começaram a reproduzir as mesmas notícias e os mesmos conteúdos.

A Argentina começa a se olhar à luz da experiência mexicana. Um México primeiro superpovoado e de máscaras, depois, deserto. As crônicas jornalísticas convidam os argentinos residentes e de passagem pelo México a enviar o relato de sua experiência e de sua situação, onde agora todos são potencialmente “letais”.

O México foi o espelho que nos devolve a imagem do que se tornaria o nosso país. Quem é o culpado? Eliminado o nome “gripe suína”, a gripe A H1N1 se refere à primeira criança que teve a doença, à mulher que foi para onde o vírus “sofreu mutação”, agora responsáveis por uma “pandemia iminente”. A situação mexicana nos leva a um túnel do tempo que remete à história das “pestes” e de suas consequências históricas, como se um século de desenvolvimento na medicina não tivesse incidência sobre as causas e as consequências potenciais da doença.

A terceira fase está marcada pela desinformação. Do ponto de vista econômico, pôde se observar o posicionamento de alguns especialistas da infectologia (representantes crônicos de interesses comerciais), que, na transmissão televisiva, chamavam à calma, enquanto vestiam uma máscara. Patético! Outros, enquanto isso, nos preparavam para nos vender a próxima vacina.

A partir do ponto de vista assistencial, existia uma saturação dos serviços ambulatoriais e de internação. As consultas se geravam, em parte, pelo pânico e pela desinformação, nos quais os meios de comunicação também faziam seu jogo. O desabastecimento, nas farmácias, de álcool gel e máscaras povoam as notícias, ao mesmo tempo que se referia à inocuidade do uso das máscaras. Os mortos vão marcando quem são os grupos de risco. Assim, dos tradicionais extremos da vida, crianças e idosos, como os mais vulneráveis, passa-se a jovens fortes e sadios, grávidas, até abranger todos.

Na dimensão social, instalou-se o medo do outro, ao que tínhamos a nosso lado, a quem se aproxima demais. Bocas fechadas que se escondem atrás de um cachecol, que inibem bocejos sob a forma de uma careta, olhares desconfiados e cheios de medo são agora a fotografia do espaço urbano. Nos transportes públicos, os movimentos são mínimos e milimetricamente calculados, os olhares se cruzam em um alerta incansável para não se encontrar perto do outro. Aquele que espia torcendo o nariz para espirrar, tirar um lenço ou pigarrear para limpar a voz provoca uma confluência de olhares reprobatórios que se avalizam mutuamente, assim a culpa inibe a ação, chama para a autocontenção, os olhares censuram atos, outrora cotidianos, tornando evidente a discriminação social que muitos sofrem diariamente por outras circunstâncias.

A quarta fase (que se superpõe à anterior) trouxe o autocuidado e a referência aos estilos de vida. Na dimensão dos negócios, apareceu a universalização da máscara, o uso do álcool e até apareceram os lenços “Dr. Ginés”. Vários laboratórios privados começaram a fornecer o diagnóstico a preços não inferiores a 250 pesos.

A partir da dimensão epidemiológica, já se reconhecia que a pandemia não tinha a mortalidade suspeita. Na dimensão social, voltava a aparecer uma velha e cômoda explicação: a da responsabilidade individual que culpa a vítima. Além disso, era preciso conseguir o “isolamento social”, expressão que reforça no imaginário a fragmentação dos conjuntos sociais e a discriminação. Mais tarde, fazíamos uma descoberta sensacional: a água e o sabão eram muito úteis. Mas o que fazíamos com os lenços e o álcool que tínhamos acumulado esperando o Apocalipse?

A quinta fase está marcada pela automedicação. Na dimensão econômica, é necessário recuperar a figura de Donald Rumsfeld (ex-secretário da Defesa de G.W. Bush). Um dos principais acionistas e ex-presidente do laboratório Gilead Sciences, que vende os direitos de fabricação e de comercialização do Tamiflu à empresa Roche. Do ponto de vista epidemiológico, soma-se o problema de quando e o que medicar. Por outro lado, potencializa-se no imaginário social que o medicamente cura e não que é um inibidor da reprodução viral. Na dimensão social, autocuidado, prevenção e automedicação se confundem na busca para se abastecer em casa de um bem escasso e precioso. A compra de antibióticos, antigripais e a busca desenfreada por Tamiflu, mesmo em países vizinhos, é o deleite daqueles que lucram com a venda livre de medicamentos e a desinformação das pessoas.

Na sexta fase, encontramos o tema do tempo livre como consequência do isolamento social. Os meios de comunicação se dedicam ao esporte de contar os mortos, como se se tratasse de um jogo entre a vida e a morte. Esperando não se sabe que resultado, nem de que campeonato. Ou será que mais mortos favorecem alguém? Alguns epidemiologistas apelando a projeções numéricas conseguem trazer mais confusão e alarme. Do ponto de vista social, coloca-se em evidência um novo pânico: o que fazer com as crianças em casa? Quando modelamos e regulamos nossas vidas em torno de instituições que proveem um alívio essencial, garantir o uso “produtivo” do tempo para os pais, e quando o uso de tempo livre se associa à ilusão de estar ocupados conhecendo novos lugares, participando de eventos especialmente concebidos para a ocasião – cinemas, espetáculos, shoppings etc. –, evidencia-se o temor de nos encontrarmos expostos à intempérie dos grandes espaços que proporcionam alívio diante da exposição de nos olharmos na cara entre aqueles que compartilham o mesmo teto, colocando em evidência a evasão e a alienação cotidianas.

Imaginamos a sétima etapa como o fim da pandemia e a saída da questão da agenda da mídia. Do ponto de vista epidemiológico, as outras epidemias existentes na Argentina continuarão em silêncio, algumas das quais matam mais do que a gripe suín… perdão, A (H1N1). Referimo-nos à tuberculose, à doença de Chagas, à leishmaniose, aos acidentes de carro e aos acidentes de trabalho, aos homicídios e à dependência às drogas. Muitas das anteriores parecem cumprir o papel de selecionadores sociais, completando assim a seleção biológica que a mortalidade infantil realizou nesses mesmos grupos sociais. Na dimensão social, questiona-se quais serão as consequências de tantas mensagens que reforçaram a ideia de se afastar do outro e que instalou a ideia do isolamento social como forma de salvação. Talvez pouco importe. A medicalização e a biopolítica continuarão seu trabalho.

(Ecodebate, 04/08/2009) publicado pelo IHU On-line, 03/08/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

BRASILEIRO NÃO GOSTA DE LER?

Sábado, Agosto 08, 2009

LIA LUFT
Revista Veja

BRASILEIRO NÃO GOSTA DE LER?

A meninada precisa ser seduzida. Ler pode ser divertido e interessante, pode entusiasmar, distrair e dar prazer.

Não é a primeira vez que falo nesse assunto, o da quantidade assustadora de analfabetos deste nosso Brasil. Não sei bem a cifra oficial, e não acredito muito em cifras oficiais. Primeiro, precisa ser esclarecida a questão do que é analfabetismo. E, para mim, alfabetizado não é quem assina o nome, talvez embaixo de um documento, mas quem assina um documento que conseguiu ler e... entender. A imensa maioria dos ditos meramente alfabetizados não está nessa lista, portanto são analfabetos – um dado melancólico para qualquer país civilizado. Nem sempre um povo leitor interessa a um governo (falo de algum país ficcional), pois quem lê é informado, e vai votar com relativa lucidez. Ler e escrever faz parte de ser gente.

Sempre fui de muito ler, não por virtude, mas porque em nossa casa livro era um objeto cotidiano, como o pão e o leite. Lembro de minhas avós de livro na mão quando não estavam lidando na casa. Minha cama de menina e mocinha era embutida em prateleiras. Criança insone, meu conforto nas noites intermináveis era acender o abajur, estender a mão, e ali estavam os meus amigos. Algumas vezes acordei minha mãe esquecendo a hora e dando risadas com a boneca Emília, de Monteiro Lobato, meu ídolo em criança: fazia mil artes e todo mundo achava graça.

E a escola não conseguiu estragar esse meu amor pelas histórias e pelas palavras. Digo isso com um pouco de ironia, mas sem nenhuma depreciação ao excelente colégio onde estudei, quando criança e adolescente, que muito me preparou para o mundo maior que eu conheceria saindo de minha cidadezinha aos 18 anos. Falo da impropriedade, que talvez exista até hoje (e que não era culpa das escolas, mas dos programas educacionais), de fazer adolescentes ler os clássicos brasileiros, os românticos, seja o que for, quando eles ainda nem têm o prazer da leitura. Qualquer menino ou menina se assusta ao ler Macedo, Alencar e outros: vai achar enfadonho, não vai entender, não vai se entusiasmar. Para mim esses programas cometem um pecado básico e fatal, afastando da leitura estudantes ainda imaturos.

Como ler é um hábito raro entre nós, e a meninada chega ao colégio achando livro uma coisa quase esquisita, e leitura uma chatice, talvez ela precise ser seduzida: percebendo que ler pode ser divertido, interessante, pode entusiasmar, distrair, dar prazer. Eu sugiro crônicas, pois temos grandes cronistas no Brasil, a começar por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, além dos vivos como Verissimo e outros tantos. Além disso, cada um deve descobrir o que gosta de ler, e vai gostar, talvez, pela vida afora. Não é preciso que todos amem os clássicos nem apreciem romance ou poesia. Há quem goste de ler sobre esportes, explorações, viagens, astronáutica ou astronomia, história, artes, computação, seja o que for.

O que é preciso é ler. Revista serve, jornal é ótimo, qualquer coisa que nos faça exercitar esse órgão tão esquecido: o cérebro. Lendo a gente aprende até sem sentir, cresce, fica mais poderoso e mais forte como indivíduo, mais integrado no mundo, mais curioso, mais ligado. Mas para isso é preciso, primeiro, alfabetizar-se, e não só lá pelo ensino médio, como ainda ocorre. Os primeiros anos são fundamentais não apenas por serem os primeiros, mas por construírem a base do que seremos, faremos e aprenderemos depois. Ali nasce a atitude em relação ao nosso lugar no mundo, escolhas pessoais e profissionais, pela vida afora. Por isso, esses primeiros anos, em que se aprende a ler e a escrever, deviam ser estimulantes, firmes, fortes e eficientes (não perversamente severos). Já se faz um grande trabalho de leitura em muitas escolas. Mas, naquelas em que com 9 ou 10 anos o aluno ainda não usa com naturalidade a língua materna, pouco se pode esperar. E não há como se queixar depois, com a eterna reclamação de que brasileiro não gosta de ler: essa porta nem lhe foi aberta.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009


Sejam bem-vindos e bem-vindas ao Blog Alegria de Ensinar.
Vamos interagir através desta ferramenta.

sábado, 4 de julho de 2009

Olhe esta charge e leia o texto final. Muito interessante.

A pergunta abaixo foi a vencedora em um congresso sobre vida sustentável.

Todo mundo 'pensando' em deixar um planeta melhor para os filhos... Quando é que 'pensaremos' em deixar filhos melhores para o nosso planeta?


Passe adiante! Precisamos começar JÁ!
Uma criança que aprende o respeito e a honra dentro de casa e recebe o exemplo vindo de seus pais, torna-se um adulto comprometido em todos os aspectos, inclusive em respeitar o planeta onde vive...

segunda-feira, 16 de março de 2009

FILME "ENTRE OS MUROS DA ESCOLA"



Colegas,
Escrevo-lhes sob o impacto da surpresa, da dureza, e da magistralidade desse filme francês, ambientado em uma escola pública de um subúrbio parisiense, no qual retrata o cotidiano de uma classe de oitava série.
"Entre os Muros da Escola" ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e disputa outros prêmios.
Como enfoca as peripécias de um professor de Francês, é oportuno vermos coletivamente e debatermos, pois apresenta certa semelhança em ser professor de Língua Portuguesa no Brasil.
Bégaudeau, o ator principal é professor de francês na vida real. Os alunos não são atores profissionais. Foram selecionados em ateliês de improvisação.
Retrata a nova sociedade francesa, onde miscigenação, desigualdade social e choque cultural confrontam os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

sexta-feira, 13 de março de 2009

OS MARACATUS DE CAPIBA

OS MARACATUS DE CAPIBA

Manuel Bandeira
Uma das mais fortes impressões que guardo do tempo da meninice foi o meu primeiro encontro com um maracatu. Era terça-feira gorda e eu ia para a rua da Imperatriz, no Recife, assistir de um sobrado à passagem das sociedades carnavalescas – Filomonos, Pás, Vassourinhas... De repente, na esquina da rua da Aurora, me vi quase no meio de um formidável maracatu. De que nação seria? Porto Rico? Cabinda Velha? Leão Coroado? Não me lembra. Dos melhores era, a julgar pelo apuro e dignidade do rei, da rainha e seu cortejo – príncipes, damas de honra, embaixadores, baianas.
Pasmei assombrado. Tudo o mais, em volta de mim, era carnaval: aquilo, não. Mas o que é que me fazia o coração pulsar assim em pancadas de medo? Analisando agora, retrospectivamente, o meu sentimento, creio que o motivo do alvoroço estava na música, naquela música que mal parecia música, – percussão de bombos, tambores, ganzás, gonguês e agogôs, num ritmo obsessor, implacável...
Mesmo de longe, lembro-me de certas noites em que, na velha casa de Monteiro, a virada trazia uns ecos do batuque, o ritmo dos maracatus que invocava.
Todas essas memórias dos meus oito anos, impagáveis como o cheiro entre-mar-e-rio dos cais da rua da Aurora, buliram em mim, mais vivas do que nunca, à leitura do livrinho, É de Tororó, primeiro de uma série, Danças pernambucanas, com o qual Arquimedes de Melo Neto, diretor da Editora da Casa do Estudante, acaba de enriquecer a nossa literatura musical.
A coleção é organizada e dirigida por Hermilo Borba Filho. Nesse primeiro volume, colaboram Ascenço Ferreira, o grande poeta do Nordeste, e Ariano Suassuna. Ascenço expõe a origem dos maracatus e como eles, destacando-se do grupo das festas dos Reis Magos (coroação dos reis das nações negras exiladas no Brasil), entraram para o Carnaval, como os temas de evocação da pátria perdida vieram sendo substituídos pelos de acontecimentos contemporâneos; e, finalmente, como eles têm degenerado no Recife por se afastarem da velha tradição. Ariano Suassuna escreve substancioso ensaio crítico sobre a obra de Capiba. Na verdade, o livrinho é uma coleção de maracatus de Capiba, ilustrada pelos estudos de Ascenço e Suassuna e pelos desenhos de Lula Cardoso Aires e Perci Lau.
Mas quem é Capiba? Capiba é o apelido de Lourenço da Fonseca Barbosa, pernambucano de Bom Jardim, criado na Paraíba, músico desde menino na banda regida pelo pai, o "professor Capiba". Quando voltou ao Recife, homem feito, foi para se tornar o compositor popular mais festejado com os seus frevos-canções, sambas, valsas e maracatus.
Informa-nos, porém, Suassuna, que Capiba não parou aí. Procurou transpor o popular para a música erudita. Assim, usou do ritmo do frevo no primeiro movimento de uma sua sonata para violoncelo e piano, escreveu toda uma série de Canções nordestinas onde se utilizou das formas englobadas no litoral sob o nome de "moda", e fixou temas da música negra em batuque e numa Suíte nordestina, esta última transcrita, depois, para orquestra por Guerra-Peixe.
Nada conheço de tudo isso. E mais – que mau pernambucano que sou! – ignorava o próprio nome de Capiba. No entanto, vejo que Suassuna dá como "a mais audaz e mais musicalmente perfeita" entre as canções do compositor nordestino aquela que tem por letra a tradução que fiz de um pequenino poema de Langston Hughes. O fragmento transcrito deixou-me com água na boca...
Dez são os maracatus de Capiba apresentados nesta coleção. Três letras são de Ascenço, as demais são do mesmo Capiba. De todos eles, o que me empurrou para mais perto da minha visão no cais da rua da Aurora foi Eh! Luanda! Reconheci longe nos acordes da mão esquerda aquele ritmo obsessor, implacável pressago a que me referi atrás. Está ele também, mas mitigado, quase caricioso, em É de Tororó, onde, no quinto compasso, há uma sétima abaixada que é uma pura delícia. Esses dois e mais Cadê os guerreiros e Onde o sol descamba, este com um tema que figura igualmente na Dança de negros de Camargo Guarnieri, são os que me pareceram mais originais. Todos, aliás, tem o mesmo sabor forte de Nordeste.

(Bandeira, Manuel. "Os maracatus de Capiba". Folha de Minas, 30 de agosto de 1958).

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

CARVANAVALIZAÇÃO II

Na Europa (Idade Média), o riso carnavalesco apresentava três as grandes formas: espetáculos e rituais cômicos – as complexas procissões que ocupavam as ruas durante dias e outras festas, como a festa dos loucos (festum stultorum) ou a festa do burro, em que se celebrava uma paródia da liturgia perante um burro paramentado.
Eram as várias formas de risus paschalis, autos, mistérios, feiras organizadas pelas paróquias locais. Esses eventos contavam com a presença de anões, gigantes e monstros.
O louco (bobo, palhaço) que mais representava esse espírito carnavalesco, era eleito rei, e, no período dessas manifestações, era alvo de brincadeiras, insultos, provocações.
Para Bakhtin, a característica maior destes rituais é a sua natureza de inversão, pelo povo, de práticas da Igreja e do Estado, em que todo o povo participava numa comunhão utópica de liberdade e abundância, de suspensão de todas as hierarquias e de dissolução da fronteira entre a arte e o mundo (ver verbete de “Carnavalização, da autoria de João Ferreira Duarte).

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

CARNAVALIZAÇÃO - VERBETE

CARNAVALIZAÇÃO

Tendo por base um verbete escrito por João Ferreira Duarte, As origens do Carnaval remontam aos cultos dos mortos e rituais de comunidades agrícolas primitivas que ocorriam durante o tempo das sementeiras e das colheitas. Na Roma antiga, as festas em honra do deus Saturno, que tinham lugar em Dezembro, eram conhecidas como as Saturnalias. No tempo de celebração das Saturnalia os escravos tomavam o lugar dos senhores e entregavam-se a toda a espécie de prazeres habitualmente proibidos.

Bakhtin analisa esse conjunto de manifestações da cultura popular observando que o elemento que unifica a diversidade de manifestações carnavalescas e lhes confere a dimensão cósmica é o riso, um riso coletivo que se opõe ao tom sério e à solenidade repressiva da cultura oficial e do poder real e eclesiástico, mas que não se limita a ser negativo e destrutivo, antes projeta o povo-que-ri em liberdade fecunda e regeneradora como a própria natureza.

sábado, 7 de fevereiro de 2009